O mistério em labirintos
por Oscar D'Ambrosio
O mistério em labirintos
“Se pudesse rasgar e deitar fora o passado como o rascunho de uma carta ou de um livro... Mas aí fica sempre, manchando a cópia a limpo, e creio que é isso o verdadeiro futuro”, frase de Luis no conto “Cartas de mamá”, publicado no livro Armas secretas (1959), de Julio Cortázar, é uma pista para penetrar no universo visual proposto pelo artista plástico Tomás Soares de Menezes Senna  em seu vídeo Liberdade condicional, que obteve o primeiro lugar no 12º Salão Paulista de Arte Contemporânea, realizado em 2008.

O texto, que mereceu inclusive uma adaptação cinematográfica por Manuel Antín, sob o nome de La cifra impar (1962), lida com uma interessante – e, por vezes, ousada – alternância de tempos na interpretação visual da narrativa de dois homens que se apaixonam pela mesma mulher. Ela escolhe um deles; o outro morre; e o casal, formado por Luis e Laura, mora em Paris, onde é perseguido pela culpa.

O que movimenta a narrativa do conto são as periódicas cartas que a mãe manda ao filho. Elas não só interrompem o equilíbrio cotidiano como tornam o passado presente. Frases e lapsos da mãe geram os mais variados sentimentos, não permitindo a morte de emoções e pensamentos que os protagonistas desejam sepultar.

Nascido em 1984, o paulistano Tomás Senna realizou um vídeo de 3 minutos e 35 segundos com fotografias em movimento. Intitulada Liberdade Condicional, a criação toma como protagonista a mãe de Luiz, ou seja, a autora das cartas. Sem falas, em preto e branco, com música de Eric Satie, a produção instaura um clima de mistério e delicadeza que cativa desde a primeira cena.

O título do vídeo é sugerido pela primeira frase do conto. A atmosfera e a melodia acentuam as imagens selecionadas de uma senhora sentada, junto à janela,  à escrivaninha e com closes do rosto. É enfatizada a solidão dela, principalmente numa cena presente no conto original: a das camisas cuidadosamente passadas que se acumulam para o filho morto.

O jogo de claro e escuro, quando a protagonista abre uma porta de um armário, muito mais revela do que esconde. A escrita de uma carta também é dominada por esse mesmo clima. Uma folha de papel em branco e uma carta fechada sobre a mencionada escrivaninha são imersas nessa mesma vereda de sombras cuidadosamente criadas e controladas no processo de edição.

O ato de colocar uma carta por baixo da porta, por exemplo, adquire uma série de simbolismos dentro da idéia de Liberdade condicional expressa no título. As cartas da mãe tornam-se assim um misterioso labirinto visual criado por uma atmosfera sutil em que o interior da mãe é progressivamente desvendado enquanto as imagens focam apenas a casa – nunca o exterior.

Tomás Senna se vale da imagem da fotografia num contexto cinematográfico para construir a sua visão de um conto célebre de Cortázar colocando a autora das cartas como protagonista numa atmosfera marcada pelo silêncio, pelos vazios e pelo isolamento. O poder da condição do ensimesmamento é acentuado como forma de bloquear caminhos existenciais, levando a uma difícil jornada pelas trajetórias labirínticas da mente.

Oscar D'Ambrosio
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